Tutaméia – Prefácio de Paulo Rónai

TUTAMÉIA , Prefácio de Paulo Rónai

pauloronai_1907-1992

Toda pessoa, sem dúvida, é um exemplar único, um acontecimento que não se repete. Mas poucas pessoas, talvez nenhuma, lembravam essa verdade com tamanha força como João Guimarães Rosa. Os testemunhos publicados depois de sua morte repentina refletiam, todos, como que um sentimento de desorientação, de pânico ante o irreparável. Desejaria ter-lhes acrescentado o meu depoimento, e no entanto senti-me inibido de fazê-lo. Não estava preparado para sobreviver a Guimarães Rosa: preciso de tempo para me compenetrar dos encargos dessa sobrevivência. Aqui está, porém, o último livro do escritor, Tutaméia, publicado poucos meses antes da sua morte, a exigir leitura e reflexão. Por mais que o procure encarar como mero texto literário, desligado de contingências pessoais, apresenta-se com agressiva vitalidade, evocando inflexões de voz, jeitos e maneiras de ser do homem e amigo. A leitura de qualquer página sua é um conjuro. Como entender o título do livro? No Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa encontramos tuta-e-meia definida por mestre Aurélio como “ninharia, quase nada, preço vil, pouco dinheiro”. Numa glosa da coletânea o próprio contista confirma a identidade dos dois termos, juntando-lhes outros equivalentes pitorescos, tais como “nonada, baga, ninha, inânias, ossos de borboleta, quiquiriqui, mexinflório, chorumela, nica”. Atribuiria ele realmente tão pouco valor ao volume fórmula como antífrase carinhosa e, talvez, até supersticiosa? Inclino-me para esta última suposição. Em conversa comigo (numa daquelas conversas esfuziantes, estonteantes, enriquecedoras e provocadoras que tanta falta me hão de fazer pela vida afora), deixando de lado o recato da despretensão, ele me segredou que dava a maior importância a este livro, surgido em seu espírito como um todo perfeito não obstante o que os contos necessariamente tivessem de fragmentário. Entre estes havia inter-relações as mais substanciais, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar o conjunto. A essa confissão verbal acresce outra, impressa no fim da lista dos equivalentes do título, como mais uma equação: “meaomnia’”. Essa etimologia, tão sugestiva quanto inexata, faz tutaméia vocábulo mágico tipicamente rosiano, confirmando a asserção de que o ficcionista pôs no livro muito, senão tudo, de si. Mas também em nenhum outro livro seu cerceia o humor a esse ponto as efusões, ficando a ironia em permanente alerta para policiar a emoção. – Por que Terceiras estórias – perguntei-lhe – se não houve as segundas? – Uns dizem: porque escritas depois de um grupo de outras não incluídas em Primeiras estórias. Outros dizem: porque o autor, supersticioso, quis criar para si a obrigação e a possibilidade de publicar mais um volume de contos, que seriam então as Segundas estórias. – E que diz o autor? – O autor não diz nada – respondeu Guimarães Rosa com uma risada de menino grande, feliz por ter atraído o colega a uma cilada. Mostrou-me depois o índice no começo do volume, curioso de ver se eu lhe descobria o macete. – Será a ordem alfabética em que os títulos estão arrumados – Olhe melhor: há dois que estão fora da ordem. – Por quê? – Senão eles achavam tudo fácil. “Eles” eram evidentemente os críticos. Rosa, para quem escrever tinha tanto de brincar quanto de rezar, antegozava-lhes a perplexidade encontrando prazer em aumentá-la. Dir-se-ia até que neste volume quis adrede submetê-los a uma verdadeira corrida de obstáculos. Seria esse o motivo principal da multiplicação dos prefácios, de que o livro traz não um, mas quatro? Prefácio por definição é o que antecede uma obra literária. Mas no caso do leitor que não se contenta com uma leitura só, mesmo um prefácio colocado no fim poderá ter serventia. Estórias à primeira vista, num segundo relance os prefácios hão de revelar uma mensagem. Juntos compõem ao mesmo tempo uma profissão de fé e uma arte poética em que o escritor, através de rodeios, voltas e perífrases, por meio de alegorias e parábolas, analisa o seu gênero, o seu instrumento de expressão, a natureza da sua inspiração, a finalidade da sua arte, de toda arte. Assim “Aletria e hermenêutica” é pequena antologia de anedotas que versam o absurdo; mas é, outrossim, uma definição de “estória” no sentido especificamente guimaraes-rosiano, constante de mostruário e teoria que se completam. Começando por propor uma classificação dos subgêneros do conto, limita-se o autor a apontar germes de conto nas “anedotas de abstração”, isto é, nas quais a expressão verbal acena a realidades inconcebíveis pelo intelecto. Suas estórias, portanto, são “anedóticas” na medida em que certas anedotas refletem, sem querer, “a coerência do mistério geral que nos envolve e cria” e faz entrever “o supra-senso das coisas”. “Hipotrélico” aparece como outra antologia, desta vez de divertidas e expressivas inovações vocabulares, não lhe faltando sequer a infalível anedota do português. E é a discussão, às avessas, do direito que tem o escritor de criar palavras, pois o autor finge combater “o vezo de palavrizar”, retomando por sua conta os argumentos de que já se viu acossado como deturpador do vernáculo e levando-os ao absurdo: põe maliciosamente a vista as inconseqüências dos que professam a partenogênese da língua e se pasmam ante os neologismos do analfabeto, mas se opõem a que “uma palavra nasça do amor da gente”, assim “como uma borboleta sai do bolso da paisagem”. A “glosação em apostilas” que segue esta página reforça-lhe a aparência pilhérica, mas em Guimarães Rosa zombaria e pathos são como o reverso e o anverso da mesma medalha. O primeiro “prefácio” bastou para nos fazer compreender que em suas mãos até o trocadilho vira em óculo para espiar o invisível. “Nós os temulentos” deve ser mais que simples anedota de bêbado, como se nos depara. Conta a odisséia que para um borracho representa a simples volta a casa. Porém os embates nos objetos que lhe estorvam o caminho envolvem-no em uma sucessão de prosopopéias, fazendo dele, em rivalidade com esse outro temulento que é o poeta, um agente de transfigurações do real. Finalmente confissões das mais íntimas apontam nos sete capítulos de Sobre a escova e a dúvida, envolvidas não em disfarces de ficção, como se dá em tantos narradores, mas, poeticamente, em metamorfoses léxicas e sintáticas. É o próprio ficcionista que entrevemos de início num restaurante chic de Paris a discutir com um alter ego, também escritor, também levemente chumbado, que lhe censura o alheamento a realidade: “Você evita o espir- rar e o mexer da realidade, então foge-não-foge.” Surpreendidos de se encontrarem face a face, os dois eus encaram-se reciprocamente como personagens saídas da própria imaginativa, perturbados e ao mesmo tempo encantados com a sua “sociedade” (sic!), tecendo uma palestra rapsódica de ébrios em que o tema do engagement ressurge volta e meia como preocupação central. O Rosa comprometido sugere ao Rosa alheado escreverem um livro juntos; este não lhe responde a não ser através da ironia discreta com que sublinha o contraste do ambiente luxuoso com o ideal “da rude redenção do povo”. Mas a resposta é acusação de alheamento deve ser buscada também e sobretudo nos capítulos seguintes. Em primeiro lugar, põe-se em dúvida a natureza da realidade através da parábola da mangueira, cada fruta da qual reproduz em seu caroço o mecanismo de outra mangueira; e o inacessível nos elementos mais óbvios do cotidiano real e aduzido, afirmado, exemplificado. Depois de tentar encerrar em palavras o cerne de uma experiência mística, sua, o autor procura captar e definir os eflúvios de um de seus dias “aborígenes” a oscilar incessantemente entre azarado e feliz, até enredá-lo numa decisão irreparável. Possivelmente há em tudo isto uma alusão à reduzida influência de nossa vontade nos acontecimentos, as decorrências totalmente imprevisíveis de nossos atos. A seguir, evoca o escritor o seu primeiro inconformismo de menino em discordância com o ambiente sobre um assunto de somenos, o uso racional da escova de dentes; o que explicaria a sua não-participação numa época em que a participação do escritor é palavra de ordem. Nisto, passa a precisar (ou antes a circunscrever) a natureza subliminar e supraconsciente da inspiração, trazendo como exemplo a gênese de várias de suas obras, precisamente as de mais valor, antes impostas do que projetadas de dentro para fora. Para arrematar a série de confidências, faz-se o contista intermediário da lição de arte que recebeu de um confrade não sofisticado, o vaqueiro poeta em companhia de quem seguira as passadas de uma boiada. Ao contar ao trovador sertanejo o esboço de um romance projetado, este lhe exprobrou decididamente o plano (talvez, excogitado de parceria com o sósia de Montmartre), numa condenação implícita da intencionalidade e do realismo: “Um livro a ser certo devia de se confeiçoar da parte de Deus, depor paz para todos.” Arrependido de tanto haver revelado de suas intuições, o escritor, noutro esforço de despistamento, completou o quarto e último prefácio com um glossário de termos que nele nem figuram, mas que representam outras tantas idiossincrasias suas, ortográficas e fonéticas, a exigir emendas nos repositórios da língua. Absorvidos pelos prefácios, ei-nos apenas no limiar dos quarenta contos merecedores de outra tentativa de abordagem. Quantas vezes, mesmo nesta breve cabra-cega preliminar, terei passado ao lado das intenções es- quivas do contista, quantas vezes as suas negaças me terão levado a interpretações erradas? Só poderia dizê-lo quem não mais o pode dizer; mas será que o diria? Descontados os quatro prefácios, Tutaméia, de Guimarães Rosa, contém quarenta “estórias” curtas, de três a cinco páginas, extensão imposta pela revista em que a maioria (ou todas) foram publicadas. Longe de constituir um convite à ligeireza, o tamanho reduzido obrigou o escritor a excessiva concentração. Por menores que sejam, esses contos não se aproximam da crônica; são antes episódios cheios de carga explosiva, retratos que fazem adivinhar os dramas que moldaram as feições dos modelos, romances em potencial comprimidos ao máximo. Nem desta vez a tarefa do leitor é facilitada. Pelo contrario, quarenta vezes ha de embrenhar-se em novas veredas, entrever perspectivas cambiantes por trás do emaranhado de outros tantos silvados. Adotando a forma épica mais larga ou gênero mais epigramático, Guimarães Rosa ficava sempre (e cada vez mais) fiel à sua fórmula, só entregando o seu legado e recado em troca de atenção e adesão totais. A unidade dessas quarenta narrativas está na homogeneidade do cenário, das personagens e do estilo. Todas elas se desenrolam diante dos bastidores das grandes obras anteriores; as estradas, os descampados, as matas, os lugarejos perdidos de Minas, cuja imagem se gravara na memória do escritor com relevo extraordinário. Cenários ermos e rústicos, intocador pelo progresso, onde a vida prossegue nos trilhos escavados por uma rotina secular, onde os sentimentos, as reações e as crenças são os de outros tempos. Só por exceção aparece neles alguma pessoa ligada ao século XX, à civilização urbana e mecanizada; em seus caminhos sem fim, topamos com vaqueiros, criadores de cavalos, caçadores, pescadores, barqueiros, pedreiros, cegos e seus guias, capangas, bandidos, mendigos, ciganos, prostitutas, um mundo arcaico onde a hierarquia culmina nas figuras do fazendeiro, do delegado e do padre. A esse mundo de sua infância o narrador mantém-se fiel ainda desta vez; suas andanças pelas capitais da civilização, seus mergulhos nas fontes da cultura aqui tampouco lhe forneceram temas ou motivos, o muito que vira e aprendera pela vida afora serviu-lhe apenas para aguçar a sua compreensão daquele universo primitivo, para captar e transmitir-lhe a mensagem com mais perfeição. Através dos anos e não obstante a ausência, o ambiente que se abrira para seus olhos deslumbrados de menino conservou sempre para ele suas cores frescas e mágicas. Nunca se rompeu a comunhão entre ele e a paisagem, os bichos e as plantas e toda aquela humanidade tosca em cujos espécimes ele amiúde se encarnava, partilhando com eles a sua angustia existencial. A cada volta do caminho suas personagens humildes, em luta com a expressão recalcitrante, procuram definir-se, tentam encontrar o sentido da aventura humana: “Viver é obrigação sempre imediata”; “Viver seja talvez somente guardar o lugar de outrem, ainda diferente, ausente.” “A gente quer mas não consegue furtar no peso da vida.” “Da vida sabe-se: o que a ostra percebe do mar e do rochedo.” “Quem quer viver, faz mágica.” A transliteração desse universo opera-se num estilo dos mais sugestivos, altamente pessoal e no entanto determinado em sua essência pelas tendências dominantes, às vezes contraditórias, da fala popular. O pendor do sertanejo para o lacônico e sibilino, o pedante e o sentencioso, o tautológico e o eloqüente, a facilidade com que adapta o seu cabedal de expressões as situações cambiantes, sua inconsciente preferência pelos subentendidos e elipses, seu instinto de enfatizar, singularizar e impressionar são aqui transformados em processos estilisticos. Na realidade o neologismo desempenha nesse estilo papel menor do que se pensa. Inúmeras vezes julga-se surpreender o escritor em flagrante de criação léxica, recorre-se, porém, ao dicionário, lá estará o vocábulo insólito (acamonco, alarife, avejão, brujajara, cara fuz, chuchorro, esmar, ganja, grinfo, gueta, jaganata, marupiara, nomina, panema, pataratesco, quera, safio, seresma, sessil, uca, vogoroca etc) rotulado de regionalismo, plebeísmo, arcaísmo ou brasileirismo, outras vezes, não menos freqüentes, a palavra nova representa apenas uma utilização das disponibilidades da língua, registrada por uma memória privilegiada ou esguichada pela linspiração do momento (associoso, borralheirar, convidatividade, de extraordem, inaudimento, infinição, inteligentudo, inventação, mal-entender-se, mirificacia, orabolas deles!, reflor!, reminisção etc) Com freqüência bem menor há, afinal, as criações de inegável cunho individual, do tipo dos amálgamas, abusufruto, fraternura, lunático de mel, metalurgir, orfandade, psiquepiscar, utopiedade com que o espírito lúdico se compraz a matizar infinitamente a língua. Porém, as maiores ousadias desse estilo, as que o tornam por vezes contundente e hermético são sintáticas: as frases de Guimarães Rosa carregam-se de um sentido excedente pelo que não dizem, num jogo de anacolutos, reticências e omissões de inspiração popular, cujo estudo está por fazer. Estonteado pela multiplicidade dos temas, a polifonia dos tons, o formigar de caracteres, o fervilhar de motivos, o leitor naturalmente há de, no fim do volume, tentar uma classificação das narrativas. é provável que a ordem alfabética de sua colocação dentro do livro seja apenas um despistamento e que a sucessão delas obedeça a intenções ocultas. Uma destas será provavelmente a alternância, pois nunca duas peças semelhantes se seguem. A instantâneos mal esboçados de estados de alma sucedem densas microbiografias; a patéticos atos de drama rápidas cenas divertidas; incidentes banais do dia-a-dia alternam com episódios lírico-fantásticos. Entre os muitos critérios possíveis de arrumação vislumbra-se-me um sugerido pelo que, por falta de melhor termo, denominaria de atonímia metafísica. Essa figura estilística, de mais a mais freqüente nas obras do nosso autor, surge em palavras que não indicam manifestação do real e sim abstrações opostas a fenômenos percebíveis pelos sentidos, tais como: antipesquisas, acronologia, desalegria, improrrogo, irriticencia, desverde, incogitante, descombinar (com alguém), desprestar (atenção), inconsiderar, indestruir, inimaginar, irrefotar-se etc, ou em frases como “Tinha o para não ser célebre.” Dentro do contexto, tais expressões claramente indicam algo mais do que a simples negação do antônimo: aludem a uma nova modalidade de ser ou de agir, a manifestações positivas do que não é. Da mesma forma, na própria contextura de certos contos o inexistente entremostra a vontade de se materializar. Em conversa ociosa, três vaqueiros inventam um boi cuja idéia há de lhes sobreviver consolidada em mito incipiente (“Os três homens e o boi”). Alguém, agarrado a um fragmento de frase que lhe sobrenada na memória, tenta ressuscitar a mocidade esquecida (“Lá nas campinas”). Ameaça demoníaca de longe, um touro furioso se revela, visto de perto, um marrua manso (“Hiato”). Noutras peças, o que não é passa a influir efetivamente no que é, a moldá-lo, a mudar-lhe a feição. O amante obstinado de uma megera, ao morrer, transmite por um instante aos demais a enganosa imagem que dela formara “Reminisção”). A idéia da existência, longe, de um desconhecido benfazejo ajuda um desamparado a safar-se de suas crises (“Rebimba o bom”). Um rapaz ribeirinho consome-se de saudades pela outra margem do rio, até descobrir o mesmo mistério na moça que o ama (“Ripuaria”). Alguém (“João Porém, o criador de perus”) cria amor e mantém-se fiel a uma donzela inventada por trocistas. Num terceiro grupo de estórias por trás do enredo se delineia outra que poderia ter havido, a alternativa mais trágica a disponibilidade do destino. O povo de um lugarejo livra-se astutamente de um forasteiro doente em quem se descobre perigoso cangaceiro (“Barra de Vaca”). Um caçador vindo da cidade com intuito de pesquisas escapa com solércia há armadilhas que lhe prepara a má vontade do hospedeiro bronco (“Como ataca a sucuri”). Enganado duas vezes, um apaixonado prefere perdoar à amada e, para depois viverem felizes, reabilita a fugitiva com paciente labor junto aos vizinhos (“Desenredo”). Noutros contos o desenlace não e um “desenredo”, mas uma solução totalmente inesperada. Atos e gestos produzem resultados incalculáveis num mundo que escapa às leis da causalidade: daí a multidão de milagres esperando a sua vez em cada conto. Por entender de través uma frase de sermão, um lavrador (“Grande Gedeão”) pára de trabalhar; e melhora de sorte. Um noivo amoroso que sonhava com um lar bonito e abandonado pela noiva; mas o sonho transmitiu-se ao pedreiro (“Curtamão”) e nasce uma escola. Para que a vocação de barqueiro desperte num camponês é preciso que uma enchente lhe desbarate a vida (“Azo de almirante”). Nessa ordem de eventos, uma personagem folclórica (“Melim-Meloso”), cuja força consiste em desviar adversidades extraindo efeitos bons de causas ruins, apoderou-se da imaginação do escritor a tal ponto que ele promete contar mais tarde as aventuras desse novo Malasarte. Infelizmente não mais veremos essa continuação que, a julgar pelo começo, ia desabrochar numa esplêndida fábula; nem a grande epopéia cigana de que neste livro afloram três leves amostras (“Faraó e a Água do rio”, “O outro ou o outro”, “Zingaresca”), provas da atracão especial que exercia sobre o erudito e o poeta esse povo de irracionais, ébrios de aventura e de cor, refratários é integração social, artistas da palavra e do gesto. Muito tempo depois de lidas, essas histórias, e outras que não pude citar, germinam dentro da memória, amadurecem e frutificam, confirmando a vitória do romancista dentro de um gênero menor. Cada qual descobrira dentro das quarenta estórias a sua, a que mais lhe desencadeia a imaginação. Seja-me permitido citar as duas que mais me subjugaram pela sua condensação, dos romances em embrião que fazem descortinar os horizontes mais amplos. “Antiperipléia” e o relatório feito em termos ambíguos por um aleijado, ex-guia de cego, do acidente em que seu chefe e protegido perdeu a vida. Confidente, alcoviteiro e rival do morto, o narrador ressuscita-o aos olhos dos ouvintes enquanto tenta fazê-los partilhar seus sentimentos alternados de ciúme, compaixão e ódio; “Esses Lopes” é a história, também contada pela protagonista, de um clã de brutamontes violentos que perecem um após outro, vítimas da mocinha indefesa a quem julgavam reduzir a amante e escrava. Duas obras-primas em poucas páginas que bastavam para assegurar a seu autor uma posição excepcional.

In Guimarães Rosa, J. Ficção completa. Editora Nova Aguilar, 1994

Postado por Meg Guimarães 27 fev 2003 @ 00:39 | Comentários (10) | TrackBack (0)

Brasil se prepara para reforma ortográfica

Novas regras da língua portuguesa devem começar a ser implementadas em 2008;  mudanças incluem fim do trema

Ministério da Educação já prepara a próxima licitação dos livros didáticos, que deve ocorrer em dezembro, pedindo a nova ortografia

DANIELA TÓFOLI
DA REPORTAGEM LOCAL

O fim do trema está decretado desde dezembro do ano passado. Os dois pontos que ficam em cima da letra u sobrevivem no corredor da morte à espera de seus algozes. Enquanto isso, continuam fazendo dos desatentos suas vítimas, que se esquecem de colocá-los em palavras como freqüente e lingüiça e, assim, perdem pontos em provas e concursos.
O Brasil começa a se preparar para a mudança ortográfica que, além do trema, acaba com os acentos de vôo, lêem, heróico e muitos outros. A nova ortografia também altera as regras do hífen e incorpora ao alfabeto as letras k, w e y (veja quadro). As alterações foram discutidas entre os oito países que usam a língua portuguesa -uma população estimada hoje em 230 milhões- e têm como objetivo aproximar essas culturas.
Não há um dia marcado para que as mudanças ocorram -especialistas estimam que seja necessário um período de dois anos para a sociedade se acostumar. Mas a previsão é que a modificação comece em 2008.
O Ministério da Educação prepara a próxima licitação dos livros didáticos, que deve ocorrer em dezembro, pedindo a nova ortografia. “Esse edital, para os livros que serão usados em 2009, deve ser fechado com as novas regras”, afirma o assessor especial do MEC, Carlos Alberto Xavier.
É pela sala de aula que a mudança deve mesmo começar, afirma o embaixador Lauro Moreira, representante brasileiro na CPLP (Comissão de Países de Língua Portuguesa).  “Não tenho dúvida de que, quando a nova ortografia chegar às escolas, toda a sociedade se adequará. Levará um tempo para que as pessoas se acostumem com a nova grafia, como ocorreu com a reforma ortográfica de 1971, mas ela entrará em vigor aos poucos.”
Tecnicamente, diz Moreira, a nova ortografia já poderia estar em vigor desde o início do ano. Isso porque a CPLP definiu que, quando três países ratificassem o acordo, ele já poderia ser vigorar. O Brasil ratificou em 2004. Cabo Verde, em fevereiro de 2006, e São Tomé e Príncipe, em dezembro.
António Ilharco , assessor da CPLP, lembra que é preciso um processo de convergência para que a grafia atual se unifique com a nova. “Não se pode esperar resultados imediatos.”
A nova ortografia deveria começar, também, nos outros cinco países que falam português (Portugal, Angola, Guiné-Bissau, Moçambique e Timor Leste). Mas eles ainda não ratificaram o acordo.
“O problema é Portugal, que está hesitante. Do jeito que está, o Brasil fica um pouco sozinho nessa história. A ortografia se torna mais simples, mas não cumpre o objetivo inicial de padronizar a língua”, diz Moreira.
“Hoje, é preciso redigir dois documentos nas entidades internacionais: com a grafia de Portugal e do Brasil. Não faz sentido”, afirma o presidente da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vilaça.
Para ele, Portugal não tem motivos para a resistência. “Fala-se de uma pressão das editoras, que não querem mudar seus arquivos, e de um conservadorismo lingüístico. Isso não é desculpa”, afirma.

 

Colégio trocará livros didáticos em até 2 anos

DA REPORTAGEM LOCAL

Colégios particulares de São Paulo já estão se preparando para a reforma ortográfica. As 165 escolas associadas da rede Pueri Domus, por exemplo, terão, em até dois anos, todo o material didático adequado às novas regras.
Na Fuvest, o maior vestibular do país, não há data definida para a aplicação das regras. Na editora Sextante, a nova ortografia passará a ser incorporada aos novos livros e aos títulos do catálogo à medida que forem, respectivamente, lançados e reimpressos. Já a Companhia das Letras e a Nova Fronteira informaram que ainda não definiram de que forma farão as alterações.
Antonio Carlos Sartini, superintendente do Museu da Língua Portuguesa, também aguarda o início da nova ortografia. “Estaremos atentos e iremos observar e analisar todas as mudanças.”
(DT)

Para escritores, trabalho será do revisor

Autores pretendem deixar para os revisores de seus livros o trabalho de adaptar o texto às novas regras ortográficas

O escritor Ruy Castro diz que já passou “da idade de reaprender a escrever” e que pretende continuar usando as regras antigas

 

DA REPORTAGEM LOCAL

“O Chico achou ótima a ideia, porém prefere permanecer tranquilo nas férias.” Foi essa a resposta bem-humorada do assessor de imprensa de Chico Buarque, Mário Canivello, ao pedido de entrevista da Folha sobre a nova ortografia. Em férias, o cantor e escritor não pode responder o que acha das mudanças, mas seu assessor já pratica as novas regras. “Idéia” sem acento e “tranqüilo” sem trema serão cada vez mais comuns nos próximos anos.
Quem poderia se beneficiar com as alterações é o escritor e colunista da Folha Ruy Castro. Registrado com um y no nome, ele conta que passou a vida sendo vítima dos legalistas, para quem a letra não existia. “Para eles, Ruy deveria ser Rui. Pelo menos nisso, para mim, a nova reforma será ótima. Ela garante o meu direito ao y, e, assim, os antigos legalistas podem ir lamber sabão… e, como são legalistas, terão de se curvar à nova ortografia.”
O escritor diz que sempre se orgulhou de respeitar as regras da língua, mas que tudo tem um limite. “Em criança, fui ensinado a escrever “tôda” porque havia um pássaro, que nunca vi mais gordo, chamado “toda”. Depois, aboliram o circunflexo em “toda” e mandaram o tal pássaro passear. E assim fizeram com todos os acentos diferenciais”, conta. “Adaptei-me facilmente àquela nova ortografia e até hoje venho utilizando-a com razoável eficiência. Mas, agora, chega. Já passei da idade de reaprender a escrever. Vou seguir usando a ortografia vigente no dia de hoje e, no futuro, se quiser, o computador que me corrija.”
O computador ou os revisores das editoras. Serão eles que também farão as correções dos novos livros de Marçal Aquino e Luiz Ruffato, por exemplo. “Fui revisor em jornal e sempre gostei muito da língua. Como todo brasileiro, porém, não sou grande conhecedor das regras. Me preocupo mais, por exemplo, em evitar palavras repetidas porque sempre há a figura do revisor”, diz Marçal, autor de “Cabeça a Prêmio”.
Ele afirma que acha bem-vindo tudo o que for para simplificar a grafia. Já Ruffato diz não ser contra nem a favor. “Tem coisas mais urgentes para serem resolvidas, como uma melhor relação cultural com os países lusófonos. Mal conhecemos os países da África que falam português.” O escritor de “Eles Eram Muitos Cavalos” afirma que vai continuar redigindo seus livros do mesmo jeito. “O trabalho será mesmo dos revisores.”
(DANIELA TÓFOLI)

A FAVOR

Separados pela mesma língua

MAURO VILLAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

VOCÊ SE SENTE confortável por não ter de escrever christallino, phantasma, theísmo? Pois foi uma simplificação da ortografia, na década de 1910, que fez que passássemos a escrever tais palavras como agora o fazemos.
A ortografia é uma convenção, mas somos a única língua no mundo com dois cânones oficiais ortográficos, um europeu e um brasileiro. O árabe é a língua de 250 milhões de pessoas em 21 países do mundo. Claro que elas não se expressam no mesmo árabe. Mas a língua oficial dos meios de comunicação de massa em todo o mundo árabe é escrita do mesmo jeito (o árabe moderno unificado ou comum), compreensível em todos os países islamitas ou onde o árabe seja falado. O espanhol é usado por cerca de 450 milhões de pessoas em 19 países.
Quarta língua mais falada do mundo, são inúmeras as suas variantes, mas aqueles que a utilizam seguem um padrão escrito comum, uniforme: só há uma forma oficial de grafá-la. O francês é língua de 125 milhões de pessoas na Europa, África, América Central e Oceania. É língua de 26 países. Sua ortografia complicada e arcaizante é baseada na grafia legal do francês medieval, codificado no século 17 pela Academia Francesa. É extensa a lista das suas variedades dialetais, mas só há uma forma de escrever o francês padrão em todo o mundo. É o caso também do inglês, primeira língua de 1 bilhão de pessoas: seu padrão ortográfico é basicamente o mesmo para todos, com pequenas divergências. Por que Portugal e Brasil seriam dois países separados pela mesma língua, quando outras línguas do mundo com muito maiores óbices resolveram seu problema ortográfico?

 


MAURO VILLAR é co-autor do “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” e diretor do Instituto Houaiss de Lexicografia.

CONTRA

O custo supera o benefício

PASQUALE CIPRO NETO
COLUNISTA DA FOLHA

A IDÉIA DE UMA ortografia igual para todos os (hoje oito) países lusófonos é sustentada por este argumento, apresentado pelo grande Antônio Houaiss (o pai brasileiro do “Acordo”) no “Breve Histórico da Língua e da Ortografia Portuguesa”: “A existência de duas grafias oficiais da língua acarreta problemas na redação de documentos em tratações internacionais e na publicação de obras de interesse público”. Sim, isso é fato.
Um sueco que queira estudar português pode ficar em dúvida entre “adoptar” (Portugal) e “adotar” (Brasil), por exemplo.
Nesse caso, o “Acordo” abrasileira a grafia, o que desagrada aos portugueses, habituados (há décadas) ao “p” e ao “c” “mudos” de diversas palavras.
E como faria o sueco se tivesse de optar entre “cômodo” (Brasil) ou “cómodo” (Portugal)? Jogaria uma moedinha para o alto, visto que, nesse e em muitos outros casos, o projeto de unificação não unifica…
Mas o “Acordo” não se limita a “uniformizar” a grafia: aproveita a ocasião para estabelecer outras alterações no sistema ortográfico. A mais marcante talvez seja a que dispõe sobre o emprego do hífen. O que hoje é muito ruim muda para… Para igual ou pior. A mudança nos diferenciais de tonicidade é outro ponto negativo. Na ânsia de eliminar acentos mais que inúteis, como o de “pêra” e “pólo”, elimina-se também o de “pára” (verbo), mais que essencial. Some-se a tudo isso o desconforto da inevitável convivência -por um longo período- com duas grafias (a “nova”, que seria vista nos jornais e revistas, por exemplo, e a “velha”, que estaria diante de nós nos livros, enciclopédias etc.) e se chega à conclusão de que o custo supera os benefícios. Quem viveu a reforma de 1971 sabe bem do que estou falando. É isso.

 


PASQUALE CIPRO NETO é autor de livros didáticos e apresentador e idealizador do “Nossa Língua Portuguesa”, da Rádio e TV Cultura.

O que muda

Entre 0,5% e 2% do vocabulário brasileiro será alterado com as mudanças

HÍFEN
Não se usará mais:

1. quando o segundo elemento começa com s ou r, devendo estas consoantes ser duplicadas, como em “antirreligioso”, “antissemita”, “contrarregra”, “infrassom”. Exceção: será mantido o hífen quando os prefixos terminam com r -ou seja, “hiper-“, “inter-” e “super-“- como em “hiper-requintado”, “inter-resistente” e “super-revista”
2. quando o prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa com uma vogal diferente. Exemplos: “extraescolar”, “aeroespacial”, “autoestrada”

TREMA
Deixará de existir, a não ser em nomes próprios e seus derivados

ACENTO DIFERENCIAL
Não se usará mais para diferenciar:
1. “pára” (flexão do verbo parar) de “para” (preposição)
2. “péla” (flexão do verbo pelar) de “pela” (combinação da preposição com o artigo)
3. “pólo” (substantivo) de “polo” (combinação antiga e popular de “por” e “lo”)
4. “pélo” (flexão do verbo pelar), “pêlo” (substantivo) e “pelo” (combinação da preposição com o artigo)
5. “pêra” (substantivo – fruta), “péra” (substantivo arcaico – pedra) e “pera” (preposição arcaica)

ALFABETO
Passará a ter 26 letras, ao incorporar as letras “k”, “w” e “y”

ACENTO CIRCUNFLEXO
Não se usará mais:

1. nas terceiras pessoas do plural do presente do indicativo ou do subjuntivo dos verbos “crer”, “dar”, “ler”, “ver” e seus derivados. A grafia correta será “creem”, “deem”, “leem” e “veem”
2. em palavras terminados em hiato “oo”, como “enjôo” ou “vôo” -que se tornam “enjoo” e “voo”

ACENTO AGUDO
Não se usará mais:

1. nos ditongos abertos “ei” e “oi” de palavras paroxítonas, como “assembléia”, “idéia”, “heróica” e “jibóia”
2. nas palavras paroxítonas, com “i” e “u” tônicos, quando precedidos de ditongo. Exemplos: “feiúra” e “baiúca” passam a ser grafadas “feiura” e “baiuca”
3. nas formas verbais que têm o acento tônico na raiz, com “u” tônico precedido de “g” ou “q” e seguido de “e” ou “i”. Com isso, algumas poucas formas de verbos, como averigúe (averiguar), apazigúe (apaziguar) e argúem (arg(ü/u)ir), passam a ser grafadas averigue, apazigue, arguem

GRAFIA
No português lusitano:

1. desaparecerão o “c” e o “p” de palavras em que essas letras não são pronunciadas, como “acção”, “acto”, “adopção”, “óptimo” -que se tornam “ação”, “ato”, “adoção” e “ótimo”
2. será eliminado o “h” de palavras como “herva” e “húmido”, que serão grafadas como no Brasil -“erva” e “úmido”

Fonte: Folha de S. Paulo

A dança das palavras


O historiador discorre sobre o congelamento e a transfiguração do sentido na língua portuguesa

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

O professor [e crítico] Antonio Candido contou há vários anos, numa roda de amigos, uma curiosa história. Se não estou enganado, o protagonista era um português, dono de uma pensão no Rio de Janeiro, chamada de “Península Fernandes”.
Intrigado e ao mesmo tempo curioso, Antonio Candido perguntou ao homem qual a razão daquele título. “É que eu me chamo Fernandes”, foi a resposta. “Bom, mas e “península’?” “”Península” é porque eu acho a palavra bonita.”
De fato, as palavras podem ser bonitas, neutras ou feias, de acordo com a percepção de cada um. Por exemplo, em matéria de fealdade, um professor de inglês de meu irmão, da mesma nacionalidade da língua que ensinava, afirmava que a palavra mais feia da língua portuguesa era “baticôn”, ou seja “boticão”, sugerindo, quem sabe, seu terror pela cadeira de dentista.
Palavras feias, aliás, não são necessariamente os chamados “palavrões”, alguns até, se não bonitos, certamente bem expressivos.
Deixo as questões estéticas, para lembrar que os signos têm vida e, portanto, nascem, vivem, alguns morrem, ficam congelados ou se transfiguram. Embora tenha atração por seu nascimento, deixo de lado a etimologia e me fixo no congelamento e na transfiguração.
Anoto, apenas, que as palavras mais interessantes, do ponto de vista da origem, não são aquelas que possuem certidão de nascimento -as de origem latina, no caso do português-, mas as de filiação discutível, dando origem às controvérsias dos filólogos, esses pesquisadores do DNA das línguas.
Vamos aos signos congelados.
Como continuamos a ler pelos anos afora o maior nome das nossas letras, Machado de Assis é uma boa referência. O que era Escobar para Bentinho, no romance “Dom Casmurro”? Seu comborço, diz Machado, ou seja, o amante de sua mulher, a acreditar-se na versão de uma “pecaminosa” Capitu. Pois bem, ninguém usa hoje essa palavra, seja na fala cotidiana, seja na escrita, mesmo a mais observadora da norma culta.
Mas a palavra não morreu, está nos dicionários, congelada, praticamente sem esperanças de ressurreição, lutando para permanecer o mais possível nesse estado.
De qualquer forma, vinga-se de nós, contemporâneos, que a desprezaram, ao obrigar-nos a ir buscar seu significado, quando lemos “Dom Casmurro”.

Comprar um bonde
A transfiguração se distingue do congelamento. Nesse caso, estamos diante de um signo que designa um objeto, uma qualidade, um determinado sentimento, e que vai mudando de significado, ao longo do tempo.
Muito me atrai a transfiguração da palavra “bonde” e sua aplicação concomitante a diferentes sentidos. Típica do português do Brasil, ela se originou da palavra inglesa “bond” (título, obrigação), impressa, a princípio, nos “bilhetes de passagem” de uma empresa do Rio de Janeiro -a “Botanical Garden Railway”, por volta de 1870.
Daí nasceu o vocábulo “bonde“, o veículo coletivo, a princípio de tração animal e depois elétrica, que fez parte da vida urbana das grandes cidades brasileiras até meados da década de 60 do século passado, como ensina o dicionário de Houaiss.
Foi tal o impacto do signo que ele serviu para compor diversas frases.
A partir da história de um caipira que, vindo a São Paulo -ou seria ao Rio?-, se maravilhou com o veículo e “comprou-o” de alguém que lhe foi apresentado como seu proprietário, surgiu a expressão “comprar um bonde”, fazer um mau negócio; da mesma forma, quando se entrava no meio de uma conversa, fazíamos uma ressalva: “Estou tomando o bonde andando, mas, mesmo assim…”.
O fim do bonde como transporte coletivo não correspondeu ao fim do signo, como se poderia supor. Se ele já designava várias coisas, passou a designar outras mais, como o “bonde” da cadeia, que leva e traz presos, ou um conjunto artístico, um grupo literário etc.
Volto à história do dono da pensão. Para ele, península não era uma “insípida porção de terra cercada de água por todos os lados, menos por um que a liga ao continente”, como ensinavam os antigos professores de geografia.
Era uma palavra bela que poderia até não designar coisa nenhuma. No meu caso, “bonde” traz muitas lembranças, no sentido de veículo coletivo, e evoca uma história, a partir de uma de suas significações.
“Bonde” era o jogador de futebol muito limitado, o “perneta”, “perna-de-pau”, mais recentemente o “cabeça-de-bagre”, execrado pela torcida e pelos cronistas esportivos.
Ora, no ano de 1942, Leônidas da Silva -o Diamante Negro- veio do Flamengo para o São Paulo, numa transferência rara naqueles tempos e que envolvia muito dinheiro.

São Paulo x Palestra
O jogador custou a entrosar-se no novo clube, a tal ponto que ele e o clube passaram a ser alvo de gozações generalizadas de palestrinos e corintianos: o São Paulo tinha comprado um “bonde”. Até que São Paulo e Palestra Itália disputaram uma partida importante pelo campeonato paulista, em meados de junho daquele ano.
Sem torcer para nenhum dos dois clubes, eu ouvia o jogo meio desligado, numa tarde de domingo, quando despertei com o brado do locutor Geraldo José de Almeida, são-paulino fanático que não escondia sua paixão: “Gol do São Paulo! Gol do São Paulo! O “bonde” de 200 contos marca um gol espetacular de bicicleta”.
Acabei vibrando com o gol espetacular de Leônidas, herói negro de nome grego da minha infância. Daí para a frente, Leônidas desencantou, embora o Palestra tenha ganho aquele jogo de 2×1, se não estou enganado. Ao contar essa história, o brado do locutor são-paulino e o impacto da palavra “bonde”, em tom irônico, ressurgem em minha memória.

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BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de “A Revolução de 1930” (Companhia das Letras).

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